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A SÚMULA 102 DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO E A JUDICIALIZAÇÃO DE FRAUDES

Por Danilo Lacerda

Nos tempos atuais o Poder Judiciário, seja em seus Tribunais Estaduais ou nos Tribunais Superiores, editam, inegavelmente, inúmeras súmulas dos mais variados temas para nortear o julgamento, sobremaneira nas instâncias inferiores e, quiçá, diminuir a duração do processo.

Ainda que se diga que não há obrigatoriedade dos Juízes em seguirem o entendimento das súmulas em razão de seu livre convencimento, desde que não vinculantes, sabe-se que a hipótese de julgamento contrário ou sem observação às súmulas é remota, o que acaba, arrisco-me a dizer, mitigando o livre convencimento do julgador.

O que se verifica é que mesmo se o entendimento formado pelo julgador em determinado caso for diverso do firmado pelo Tribunal, o julgamento será em conformidade com a súmula editada daquele determinado tema. Tal ponto, aliás, pode ser verificado inclusive na essência do atual Código de Processo Civil.

Verifica-se também, sobremaneira em ações relacionadas à saúde suplementar, que não raras vezes busca-se a alocação da problemática jurídica em determinada súmula sem ao menos analisar os argumentos contrários ou específicos levados que contradizem os argumentos ou mesmo determinada indicação médica objeto daquela ação, ou seja, não há qualquer diálogo, retornando-se, então, à mera subsunção da situação fático-jurídico à – agora – uma súmula.

O desprezo de todo e qualquer contexto no entorno do caso levado ao Judiciário vai de encontro à própria Hermenêutica Constitucional, que, porque não dizer, elevou a Justiça nas decisões tomadas ao observar todo o contexto histórico, social e cultural do caso para chegar-se a uma decisão mais próxima do senso comum de Justiça.

Ainda que um dos elementos da Hermenêutica Constitucional seja a interpretação sob a lente dos princípios constitucionais, dentre eles o da garantia razoável do processo, é de se considerar, aparentemente, a impossibilidade, inviabilidade e irrazoabilidade de, via de regra, submeter a prestação jurisdicional à mera subsunção a súmula ou este ou aquele entendimento do Tribunal em prejuízo a melhor exploração e análise da questão.

Por outro lado, é inegável que o objetivo das súmulas é encurtar a duração do processo, que é Constitucionalmente garantido aos cidadãos e deve, inegavelmente, ser buscado por todos os sujeitos do processo, mas não pode, sob qualquer hipótese, colocar em mínimo risco a busca pela melhor prestação jurisdicional, que é aquela que mais se aproxima da Justiça.

Registra-se que não se desconhece a validade e a necessidade de se editar súmulas, no entanto, a problemática que pretende-se abordar é se a aplicação indiscriminada das súmulas em mera subsunção, sem qualquer análise aprofundada da questão em total mitigação ao livre convencimento do Juiz ou mesmo os argumentos levados nos autos do processo, se confronta com a Hermenêutica e Justiça Constitucional e, consequentemente, dá azo à possibilidade de submeter à chancela do Poder Judiciário ações em que se busca meramente fraudar.

Neste cenário, fica o questionamento: as súmulas – em verdade, sua aplicação indistintamente – representam, então, retrocesso à mera subsunção dos fatos levados ao Judiciário em prejuízo à melhor interpretação normativa constitucional do objeto litigioso ou representa a efetiva aplicação da garantia constitucional da celeridade e razoável duração do processo. Objetivamente, se a aplicação indistintamente das súmulas é benéfico ou prejudicial aos cidadãos.

É de se afirmar, sem qualquer margem de erro, que teríamos resultados diferentes a determinadas questões judicializados caso a decisão tomada fosse apoiada na Hermenêutica Constitucional ao invés da subsunção à uma súmula, em especial a de n.º 102 do Tribunal de Justiça de São Paulo em casos relacionados a saúde suplementar, que é o objeto deste honesto texto.

Há inúmeras demandas em que a recomendação para determinado procedimento cirúrgico se dá de modo isolado por um profissional médico, com CRM ativo, mas que outros profissionais, em sua totalidade, divergem com relação a indicação daquele procedimento cirúrgico ou mesmo da quantidade de materiais especiais solicitados. Entretanto, por força da mencionada súmula, o Julgador pode se ver obrigado à determinar a realização do procedimento, ainda que não seja o tratamento mais adequado ao paciente-cidadão.

Tais decisões, por não se revestirem do senso mais próximo da Justiça ao próprio cidadão-autor que o tutela em razão de seu desconhecimento técnico na ciência da medicina, desperta a necessidade de questionar-se se a aplicação de súmula em mera subsunção e em prejuízo a Hermenêutica Constitucional de fato é o que espera o cidadão-autor do Poder Judiciário, já que tal aplicação é sinônimo de garantia da celeridade e razoável duração do processo.

Em tal hipótese – realização de procedimento cirúrgico por força de decisão concessiva de tutela de urgência, em que pese haver contraindicação à referida conduta médica – tem-se que não se estabeleceu a melhor prestação jurisdicional possível ao cidadão na medida em que tal decisão se distancia do senso de Justiça.

Ainda que o cidadão possa exteriorizar a sua concordância com àquela conduta cirúrgica que lhe foi recomendada, em opinião isolada de determinado profissional em comparativo a de outros profissionais e literatura médica, é evidente que em seu âmago seu interesse, em verdade, é ver dissipada a divergência médica estabelecida.

Via de regra, a divergência médica se dá entre o cirurgião particular do cidadão e o cirurgião auditor de operadoras de planos de saúde.

Na prática, o que se vê é que a balança pende para o lado do cirurgião particular do cidadão em desconsideração total à opinião médico do cirurgião auditor das operadoras de planos de saúde.

E é aqui que entra a aplicação indistinta e maléfica da referida Súmula 102. Ora, não importa se há opinião médica divergente – que, registre-se, é tanto médico quanto o médico particular do cidadão –, como há uma indicação para realização de determinado procedimento cirúrgico a operadora, por força da súmula 102, deverá ser custeado pela operadora de plano de saúde, concorde ou não, tenha opinião médica divergente ou não.

Em ações com litígios de tais natureza as operadoras começam o jogo perdendo por 2 x 0, o que, acredita-se, seja atribuído ao rótulo de que as operadoras de planos de saúde negam o custeio de procedimentos sem qualquer justificativa para tal, e, em contrapartida, buscam lucrar – ou diminuir o seu custo – com as referidas negativas.

Não se está aqui a tentar canonizar as operadoras de planos de saúde. Longe disso. É óbvio que há negativas de atendimento que se apresentam injustas e, sim, devem ser coibidas pelo Poder Judiciário.

O que não se pode aceitar – e não em nome das operadoras de planos de saúde, mas sim de todos os cidadãos – é que profissionais mal intencionados utilizem-se deste expediente para obterem vantagem pecuniária em detrimento de todos os cidadãos. E cidadãos, no plural mesmo. É que, além do cidadão-autor que submeter-se-á ao procedimento cirúrgico indevido e ser exposto a todos os riscos inerentes ao ato– e em casos de fraudes as cirurgias são sempre complexas, de grande porte, com a utilização e colocação de materiais infindáveis no paciente – todos os demais cidadãos são diretamente prejudicados com a realização de procedimentos indevidos.

Isto, pois, espera-se que a alocação dos valores pagos pelos cidadãos às operadoras de saúde sejam gastos, obviamente, somente com o necessário, sem desperdícios.

Considerando que o descumprimento de ordem judicial não é uma opção, com a aplicação da súmula 102 a casos como os acima retratados, as operadoras de planos de saúde não tem opção senão desperdiçar, de modo consciente, recursos dos seus beneficiários.

Esse desperdício de recursos comporá, por óbvio, o sinistro do contrato do qual o cidadão-paciente submetido ao indevido procedimento é parte.

Aumentando o sinistro do grupo – e nesta hipótese indevidamente – por óbvio que o custo e a contraprestação do plano de saúde aumentará à todos os beneficiários, indistintamente, em observância ao princípio do direito civil da manutenção dos contratos.

Caso se torne impossível o reajuste da contraprestação em razão de seu percentual ser insuportável àquele contrato, não haverá outra solução senão sua resilição, com a consequente descontinuidade da assistência à saúde àqueles beneficiários.

Aqui, vale registrar, que os cidadãos beneficiários de planos individuais/familiares não estão à margem de experimentarem os prejuízos que podem ser causados pela aplicação indistinta da súmula 102.

Pode-se ter a falsa impressão de que os cidadãos beneficiários de tal categoria experimentam meramente os reajustes máximos divulgados pela ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar, diferentemente do que ocorre com os contratos de natureza coletiva em que não há teto para o reajuste. Entretanto, o que talvez não seja de conhecimento geral, é que os índices máximos divulgados pela ANS para reajustes dos planos individuais/familiares nada mais são do que a média dos reajustes aplicados em período anterior aos planos coletivos.

Ou seja, inclusive àquele beneficiário de plano de saúde individual amarga prejuízos em decorrência das fraudes levadas à chancela do Poder Judiciário.

Não se discute que os Julgadores, tais como os demais operadores do direito, não tenham condições técnicas-científicas de se analisar se o procedimento levado à judice é necessário ou não. Entretanto, há de se ter uma solução para tal, seja, antes de conceder a tutela de urgência que certamente foi pedida pelos profissionais mal intencionados – e não pelo cidadão-beneficiário que, repita-se, na praticamente totalidade das vezes tampouco tem conhecimento na ciência médica – ouvir a parte contrária acerca dos motivos de sua suposta negativa, seja via implantação, de modo efetivo, do NAT – Núcleo de Apoio Técnico ao Juízes na área da saúde suplementar.

Além disso, as operadoras de planos de saúde vêm adotando medidas com o intuito de se combater os profissionais mal intencionados, como por vezes se é noticiado pela mídia sob a denominação da máfia das próteses, entretanto, como as investigações no âmbito criminal, em sua própria essência, é mais morosa do que a simples distribuição de ações com o objetivo de fraudar, pouco importando o resultado que tal fato trará ao cidadão, é necessário também que caso a caso seja analisado sob a ótica da Hermenêutica Constitucional, levando-se em consideração todas as informações constantes nos autos e, porque não, o contexto social e histórico do fato levado à análise.

Ao que nos parece, a indicação de tratamentos médicos indevidos com o único objetivo de obter vantagem por profissionais mal intencionados não encontra no Poder Judiciário um desestímulo a tal conduta, mas, data máxima vênia, encontram na judicialização de tais fraudes a possibilidade de se dar uma roupagem de legalidade àquele ato fraudulento.